domingo, 8 de agosto de 2010

Continuação- Sob a lei , obras da lei

Este artigo é uma exposição mais detalhada da questão apresentada no post “Sob a Lei" e "Obras da Lei”.







“(...) percebemos que a pessoa não é declarada justa por Deus com base na observância legalista dos mandamentos da Torah, mas por meio da fidelidade decorrente da confiança no Messias Yeshua (...).” (Gálatas 2:16, NTJ)







Observância legalista dos mandamentos da Torá. A palavra grega “nomos”, que em geral significa “lei” é a palavra normalmente utilizada no Novo Testamento para o hebraico Torá, em geral traduzida para “Lei de Moisés” ou simplesmente “Lei”. Em função disso, a maioria dos cristãos pensa que “erga nomou”, literalmente “obras da lei”, um termo que aparece três vezes no v. 16, deve significar “atos feitos em obediência a Torá”. Isso, no entanto, é um erro. Um dos mais bem guardados segredos do Novo Testamento é que quando Sha’ul escreve “nomos” muitas vezes não quer dizer “lei”, mas “legalismo”.







Para que minha defesa dessa interpretação não se pareça um tanto apelativa, defenderei o meu ponto de vista citando dois notáveis eruditos cristãos gentios, sem que nenhum judeu messiânico tivesse demonstrado particular interesse no assunto. C. E. B Cranfield, em seu comentário do livro de Romanos, escreveu:







“(...) será bom manter em mente o fato (o qual até onde sabemos, não recebera a devida atenção até ser notado no [artigo de Cranfield] Scottish Journal of Theology, Vol. 17, 1964, p. 55) que a língua grega nos dias de Paulo não possuía nenhum grupo de palavras que correspondesse aos nossos termos ‘legalismo’, ‘legalista’ e ‘legalístico’. Isso significa que faltava a Paulo uma terminologia adequada que pudesse expressar essa distinção fundamental, o que dificultou seriamente a exposição da perspectiva cristã quanto à lei. Diante disso, deveríamos sempre, assim pensamos, estar prontos a considerar a possibilidade de que as declarações paulinas, que a primeira vista parecem depreciar a lei, foram na verdade dirigidas não contra a própria lei, entretanto contra uma interpretação errônea e um uso equivocado da lei, para o que agora possuímos uma terminologia adequada. Paulo foi pioneiro quanto a esta difícil questão. Se fizermos a devida correção neste caso, não seremos confundidos ou enganados com tanta facilidade por certa falta de precisão nas declarações que por vezes encontraremos.” (C. E. B. Cranfield, The International Critical Commentary, Romans, [O comentário crítico internacional, Romanos] 1979, p. 853).







Cranfield está certo, exceto quanto à sua especulação acerca de ser o primeiro. Quarenta e três anos antes, Ernest De Witt Burton, em seu clássico comentário de Gálatas, também deixou claro que no versículo em questão “nomos” significa “legalismo” e não a Torá divina:







“Nomou é utilizada de modo claro aqui (...) em seu sentido “legalístico”, indicando a lei divina apenas como um sistema puramente legalista que se constitui de obrigações e funciona na base da obediência ou desobediência, diante do qual o homem é aprovado ou condenado em função de sua dívida e desprovido de qualquer graça. Isso é a lei divina conforme definida por um legalista. No entendimento do apóstolo, essa noção só tem validade na medida em que se constitui em um dos elementos da lei divina, separado de todos os demais elementos e aspectos que constituem a totalidade da sua revelação. Ao se fazer essa separação, a vontade de Deus e a sua verdadeira atitude para com o homem são distorcidas. Por erga nomou Paulo quer dizer atos de obediência para com leis formais executados em um espírito legalista, na expectativa de conseguir com isso merecer e garantir a aprovação e a recompensa divinas; obediência essa, em outras palavras, feita de acordo com o entendimento da lei do Antigo Testamento pelos legalistas, por eles expandida e interpretada. Embora nomos não existisse no sentido de ser equivalente à base da justificação na lei divina, erga nomou, entretanto, existia de modo muito real na forma de pensar e na prática de homens que concebiam a lei divina desta maneira (...). A tradução dessa frase aqui e em diversos outros lugares (...) por ‘as obras da lei’ (...) é um grave erro das [versões que a apresentam].” (E. Burton, The International Critical Commentary, Galatians, [O comentário crítico internacional, Gálatas] 1921, p. 120).







A frase “erga nomou”, encontrada somente nos escritos de Sha’ul, é utilizada oito vezes e sempre em relação a uma discussão técnica acerca da Torá, sendo três vezes aqui; em 3:2, 5 e 10; e em Rm 3:20, 28. Dois outros usos de “erga” (“obras”) estão em estreita associação com a palavra “nomos” (“lei”) – Rm 3:27, 9:32. Até mesmo quando ele utiliza “erga” de forma isolada, o significado implícito em geral é o de “obras legalistas” (5:19; Rm 4:2, 6; 9:11; 11:6; Ef 2:9; 2Tm 1:9; Tt 3:5), embora ele a use 17 vezes de uma forma neutra (Rm 2:6; 13:3, 12; 2Co 11:15; Ef 2:10; 5:11; Co 1:21; 1Tm 2:10; 5:10, 25; 2Tm 3:17, 4:14; Tt 1:16; 2:7, 14; 3:8, 14).







Minha conclusão é de que em todos os casos “erga nomou” não significa atos realizados em função de se seguir a Torá da maneira em que Deus planejou, mas atos realizados como conseqüência de se perverter a Torá fazendo dela um conjunto de regras as quais, supõe-se, podem ser obedecidas de forma mecânica, automática e legalista, sem que se tenha fé, sem que se deposite a devida confiança em Deus, sem que se ame a Deus e aos homens, e sem que se esteja no poder do Espírito Santo.







“Erga nomou”, portanto, é um termo técnico cunhado por Sha’ul para atender de forma precisa a necessidade acerca da qual Cranfield escreveu; uma expressão que fala de legalismo e não da lei. No entanto, em razão do tema abordado por Sha’ul ser a falta de compreensão e perversão da Torá em algo que nunca pretendeu ser, erga nomou é, especialmente neste contexto, “obras legalistas relacionadas à Torá”, exatamente como Burton explicou. Essa é a razão da minha tradução: observância legalista dos mandamentos da Torá.







De modo semelhante, “upo nomon” (“sob a lei”), que aparece cinco vezes nesta carta, jamais significa simplesmente “sob a Torá”, no sentido de “sujeito às suas prescrições” ou de “vivendo dentro de sua estrutura”. Antes, com apenas uma variação de fácil explicação, é a forma curta de Sha’ul expressar “vivendo sob a opressão causada por se estar escravizado ao sistema social ou à mentalidade que se origina sempre quando a Torá é deturpada em legalismo”.







Pesquisadores cristãos já discursaram de forma ampla acerca da suposta ambivalência do entendimento de Sha’ul quanto a Torá. Seus esforços têm sido no sentido de demonstrar que, de algum modo, ele conseguia abolir a Torá sem deixar de respeita-la. Pesquisadores judeus não-messiânicos, elaborando sobre essa conclusão pretensamente correta e fornecida de forma gratuita por seus colegas cristãos de que de fato Sha’ul aboliu a Torá, tomaram para si a responsabilidade de demonstrar que a conseqüência lógica do fato de Sha’ul ter abolido a Torá é que ele também não a respeitava, e por isso teria removido a si próprio e a todos os futuros crentes judeus em Yeshua, do campo do judaísmo (a tão conhecida “bifurcação do caminho”). Deste modo, judeus não-messiânicos de orientação liberal dos tempos modernos também tiraram a sua casquinha da situação reivindicando Jesus para si na qualidade de um excelente mestre judeu, e ao mesmo tempo fazendo de Sha’ul o vilão da história.







Sha’ul, entretanto, nesse caso, não era ambivalente. Para ele a Torá de Mosheh era inequivocamente “santa” e cada um de seus mandamentos “santo, justo e bom” (Rm 7:12). E de igual modo eram as obras feitas em verdadeira obediência à Torá. Mas para que fossem consideradas boas por Deus, as obras feitas em obediência à Torá tinham que estar alicerçadas na confiança, e não no legalismo (veja Rm 9:30-10:10&NN). Se mantivermos em mente que Sha’ul não tinha nada de bom para dizer acerca do pecado de se perverter a Torá em legalismo, e nada de ruim para dizer sobre a Torá em si mesma, então as pretensas contradições quanto à sua visão da Torá simplesmente desaparecem. Em vez de ser o vilão que destruiu a principal sustentação do judaísmo, levando os judeus a se desviarem, ele é o mais autêntico expositor da Torá que o povo judeu já teve, além do próprio Messias Yeshua

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